preconceitos na interação humanocomputador, é uma reflexão sobre pesquisas que eu tenho desenvolvido junto com outros colegas aqui na UTF-PR, com o professor Rodrigo Gonzato, da PUC do Paraná, que amanhã vai falar para vocês. Então, essas duas falas estão muito ligadas, a gente tem discutido ideias em consonância há bastante tempo, apresentando uma perspectiva crítica derivada de interdisciplinaridades com as ciências humanas e com o design. Primeiramente, vamos examinar o conceito da palavra preconceito, até porque não é tão simples assim, é uma palavra que é usada no vocabulário corrente, uma palavra de uso coloquial, mas muitas vezes ela é usada academicamente sem ligar diretamente com o seu uso histórico. Por que foi criada a palavra preconceito e utilizada no contexto da discussão sobre racismo, homofobia e outras violências que a gente vê na nossa sociedade? Primeiramente, o preconceito não é um pré-conceito, ele é um pré-conceito usado para um propósito específico, então não é qualquer preconceito que é preconceito. Eu estou complicando um pouco porque é bem importante perceber essa distinção. O que é um conceito? É quando você generaliza uma categoria a partir do contato com diversos objetos que são parecidos, então você generaliza uma categoria desse objeto. Isso é fundamental para a gente interagir com as mais diversas coisas do mundo, sem conceito a gente não interage com o mundo. Por exemplo, o conceito de competência que está nesse slide é um conhecimento que se adquiriu na prática, que está super na moda agora discutir em relação às mudanças na educação. O pré-conceito seria você se basear nesse conceito existente para aplicar aquilo para uma situação nova que é diferente, que você não conhece, que você não tem um conceito, mas você usa esse conceito prévio até você interagir com aquela coisa, ter o contato sensível com o objeto e você pode descartar o seu pré-conceito ou mantê-lo. Por exemplo, você vê um homem e esse homem você imagina que ele é competente porque ele está bem vestido, está com a roupa padrão, digamos assim, como um bom trabalhador de escritório. Isso é um pré-conceito. Agora, um preconceito seria você usar aquele conceito de competência de uma maneira completamente deturpada para supor que mulheres não são competentes em certas atividades. Por exemplo, atividades ligadas à computação, como programar. Mulher não é boa programadora, homem que programa bem. Isso é um preconceito. Não é só um pré-conceito que impede você de ter o contato sensível com o objeto. É um conceito que é utilizado não só por você, mas por toda a sociedade de modo geral para oprimir aquelas mulheres, para fazer as mulheres se sentirem menos do que elas poderiam ser e com isso valorizar e manter os privilégios dos homens. Então, o preconceito é um conceito falacioso que justifica relações de opressão na sociedade. Por isso que eu acho importantíssimo discutir não só o preconceito, mas o preconceito em relação à opressão, porque aí fica claro a sua intencionalidade, o seu efeito político. Por que ele existe? É porque existe uma relação histórica que não é relativa apenas a um indivíduo, é relativa a um grupo social. Então, eu me baseio no Paulo Freire e nos escritos posteriores e subsequentes desse estudo latino-americano de opressões, principalmente no livro "Pedagogia do oprimido", o Paulo Freire define a opressão como uma relação histórica entre grupos sociais, que são historicamente privilegiados, e grupos sociais que são historicamente desprivilegiados. E isso, no caso do livro "Pedagogia do oprimido", ele vai falar sobre os camponeses como oprimidos e os donos de propriedades rurais grandes, os latifundiários como sendo os opressores. Mas ele vai falar também sobre estudante e professor também nessa relação de opressão. Basicamente, a relação de opressão consiste num processo constante, histórico, que leva muitos anos, muitas décadas, se não séculos, de desumanizar o oprimido, para que o oprimido sinta a necessidade de ter a guia do opressor, de ter a proteção do opressor. E o opressor faz isso através de preconceitos que o oprimido até ele acaba internalizando. Então, aquele preconceito de que a mulher não é capaz de fazer certas coisas como programar, muitas mulheres acabam internalizando e aceitando esse preconceito sem nunca ter nem tentado programar, porque é assim que funciona a relação de opressão. Ela não é um indivíduo só sendo preconceituoso com o outro, é um grupo social usando o preconceito contra o outro, e não só o preconceito, como várias outras estratégias. Porém, os oprimidos tentam reagir e reagir à opressão, e eles vão tentar desconstruir esses preconceitos e reconceitualizar a sua categoria. Em vez das mulheres aceitarem que elas são incapazes, elas vão afirmar "somos capazes sim de programar, estamos aqui na computação", e existem vários movimentos hoje de mulheres na computação que afirmam isso. E esse processo vai reumanizar as mulheres e qualquer grupo de oprimidos que reagirem à opressão, porque eles vão conquistar possibilidades de ser mais que tinham sido negadas pelos opressores. Dentro da interação humano-computador, esse conceito de opressão não é muito utilizado, é uma pesquisa original que a gente tem feito eu e o professor Gonzato, o professor Cláudia Bordinho, que é da UTF-PR, e outros relacionados ao professor Luiz Ernesto Meckle, aqui da UTF-PR, que tem pesquisado opressão relativa à interação humano-computador nesse âmbito mais amplo. E ao verificar a literatura de HC, quando encontra a palavra "opressão" ou alguma palavra de tipo "violência simbólica", algo relacionado, normalmente o opressor, esse grupo que está oprimindo, acaba sendo materializado ou reduzido a uma máquina, ao próprio computador, como se o computador pudesse oprimir os usuários. Então, dentro da interação humano-computador, essa discussão de opressão está centrada numa relação, numa interação humano-computador opressiva, como se o computador pudesse oprimir através de um projeto ruim, que ele não explica como ele funciona, e ele imputa aos usuários certas situações que o usuário não se sente confortável, que ele não entende, que ele fica perdido, confuso. Essa discussão, a gente acredita que ela ainda é muito superficial para discutir opressão, até porque a opressão é uma relação entre grupos sociais, pela definição do Paulo Freire e das literaturas derivadas. Então, a gente prefere pensar que por trás de todo computador sempre tem um outro grupo social. Esse grupo social que tem privilégios podem ser aqueles mesmos grupos das outras opressões, e de fato, na maioria das vezes, são. Então, se o homem é um opressor em relação às mulheres, quando o computador estiver na mão dos homens e eles puderem dominar esse computador, eles vão usar o computador para oprimir as mulheres, mesmo que eles não estejam fazendo isso de maneira totalmente consciente. Justamente, o trabalho da pedagogia crítica do Paulo Freire é conscientização, porque nem o oprimido, nem o opressor estão completamente conscientes de que um está oprimindo o outro. E isso é um processo que vai do individual para o coletivo, porque individualmente a gente pode até perceber uma ou outra ação preconcentuosa, mas perceber que isso é feito sistematicamente ao longo dos anos exige uma análise minuciosa da história daquela relação. Se a gente olhar na história da interação mano-computador, a gente vai perceber, sim, que existe um grupo que concentra o privilégio de determinar, definir, projetar o computador e que vai prescrever comportamentos, vai controlar os comportamentos, vai analisar estatisticamente e vai vigiar os oprimidos, que são grupos sociais historicamente desprivilegiados, vão envolver as mulheres, negros, LGBT e vários outros grupos que têm essa tradição de serem diminuídos, de ter essa humanidade negada na nossa sociedade. Mas os oprimidos reagem à opressão, inclusive através do computador, através de subversão dos usos projetados, você usar de uma maneira desviante aquilo que foi projetado para um determinado propósito, em si já é uma maneira de reagir à opressão. Criticar as interações mano-computador, falar mal nas redes sociais de um determinado aplicativo, por ele ser acista, homofóbico e contra os indígenas e por aí vai, a criptografia é uma maneira do oprimido se proteger dessa vigilância. São algumas estratégias que opressores e oprimidos utilizam que eu acabei de elencar. Agora, eu tenho olhado especificamente nessa apresentação para preconceitos. Como preconceito, a estratégia dos preconceitos são utilizadas para reiterar as opressões através da interação mano-computador. O artigo que eu escrevi no Capa, que foi um workshop muito bacana que aconteceu no IHC em 2017, aqui perto em Joinville, é um artigo que analisa, então, seis preconceitos da interação mano-computador que eu vou sintetizar rapidamente aqui para vocês e depois vou falar um pouquinho sobre os desdobramentos e reflexões recentes a partir desse assunto. O primeiro preconceito é a desumanização do computador. Se vocês assistirem o filme "Cenas de Estrelas Além do Tempo", um filme maravilhoso sobre as mulheres que foram pioneiras na programação de computadores que ajudaram a levar o homem à lua, lá vai aparecer que a palavra computador era usada para definir essas mulheres antes de existirem as máquinas de computar. Então, a mulher negra que trabalhava fazendo cálculos extremamente copiosos, difíceis e demorados, elas chamavam-se computers, computadores, porque elas computavam, era o trabalho delas computar. A máquina não conseguia computar. E esse trabalho era desumano, um trabalho considerado inferior, tanto é que em determinado momento do filme, uma mulher que é computadora, ela tenta escrever um artigo e publicar com seu nome junto com um autor que é um matemático, um físico famoso, e ele fala "computadores não são autores, porque eles só calculam". E aí existe toda uma briga para mostrar que a computadora, a pessoa que está computando, essa mulher, ela também é autora. E aí disso decorre historicamente dessa invisibilização das mulheres negras que trabalhavam na computação e outras mulheres também, porque não eram só mulheres negras que trabalhavam nesse processo, surge e deriva-se o preconceito de que a máquina de computar não é humana, porque ela herda um trabalho desumano. Então esse trabalho não tem nada de criativo, esse trabalho não tem nada de empreendedor, não tem nada de humano. Isso vai gerar um preconceito que o computador precisa ser traduzido para os humanos e que o computador pode utilizar uma linguagem absolutamente crítica para se comunicar com aqueles que são iniciados, que não precisam de tradução. Então você vai ter divisões, interfaces para os iniciados baseados em prompt de comando, baseado em domínios de linguagens avançadas, e você vai ter as interfaces para aqueles que são os humanos, que precisam de uma tradução, uma interface gráfica mais simplificada. Então um preconceito leva a outro. O segundo preconceito é justamente essa distinção entre grupos tecnológicos, pessoas que sabem usar o computador, dominar o computador, e outras pessoas que não sabem. E que pessoas que, por saberem dominar, são mais humanas, ou na verdade são além de humanas, porque elas conseguem fazer algo que é sobre humano. Programar o computador às vezes é considerado na nossa sociedade uma atividade sobre humana. Porém, por outro lado, quem programa muitas vezes é considerado também uma pessoa com dificuldades de relacionar com outros seres humanos, por isso menos humanos. Então existe todo esse preconceito arraigado dentro da interação humano-computador que a gente precisa questionar através de discussões como essa. Porque eles vão dar origem a vários outros preconceitos, como a naturalização da divisão do computador. Uns programam, outros usam. E aí isso é considerado absolutamente natural, sempre foi assim. E quando não é verdade, porque a história da computação começa com pessoas programando para si, para resolver os próprios problemas. Quando a pessoa que... Não existiu o conceito de usuário, esse é um conceito que vai surgir depois e que vai se transformar num preconceito. Então essa tirinha do vida de programador, ela volta e meia reitera todos esses preconceitos que eu estou listando aqui, em especial esse da divisão entre as pessoas que programam e as pessoas que usam. E não é por acaso que nessa tirinha aparece uma mulher como usuária e um programador como homem, porque o machismo... Esse preconceito da interação humano-computador ele reitera o machismo e outros preconceitos. Então a mulher pergunta, o que é esse monte de texto estranho na sua tela? "Isso é código fonte, que é o que cria o programa e faz funcionar do jeito que eu quero." E aí a mulher responde, "Então deve ser por isso que sempre eu via um texto assim e apagava pensando que era lixo. O programa dava erro e eu tinha que chamar o suporte." E o programador homem cai para trás, provavelmente assustado com a reação dessa usuária, provavelmente fazendo um julgamento de valor que não está aparecendo aqui, que está nas entrelinhas, de como pode uma pessoa ser tão burra que fazer uma estupidez dessa. Não está escrito isso no texto, mas está escrito nas entrelinhas. E essa divisão mostra que o conhecimento do programador é muito maior do que o conhecimento dessa mulher. Por que a Tirinha compara esses conhecimentos dentro de uma interação específica em que esse programador, essa pessoa que domina o computador, ela tem um desenvolvimento, uma desenvolventura maior, enquanto, na verdade, essa mulher pode ter outros conhecimentos em outras áreas que são completamente ignorados. Afinal de contas, para que ela queria limpar esse... Por que ela queria limpar esse documento? Porque ela tinha um outro propósito que era válido, provavelmente para liberar espaço no computador para fazer outras coisas mais importantes para ela. Esse preconceito também vai dar origem a um preconceito mais específico que também aparece nessa Tirinha, que parece que aquela mulher é burra, aquele desenvolvedor é preguiçoso ou preconceituoso. Quando se individualiza os problemas sociais, você cria bodes expiatórios. Então, basta demitir esse programador preconceituoso que está liberado o machismo da minha empresa. Não é bem assim, o machismo, assim como as outras opressões, está encrustado nas nossas estruturas de interação. E isso envolve não só o computador, envolve as estruturas de interação no ambiente de trabalho. Quando a gente reduz isso para um problema individual, sem a relação com os grupos humanos ao qual essas pessoas fazem parte, a opressão não é mais vista, fala-se de preconceito como um problema pessoal. Então, é importante também a gente ver que isso vai se... Cada vez o preconceito vai se tornando mais escondido, até o ponto em que ele se torna uma operação estratégica, do tipo vou encaixar cada pessoa dentro de uma caixinha, dentro de um estereótipo cultural ou dentro de um perfil estatístico. E aí, o segmento de clientes, e eu vou projetar uma interação para o usuário médio ou para uma persona. Vejam, esses dois métodos que são amplamente disseminados dentro da interação humano-computador, em especial na prática da indústria, eles são baseados em todos esses preconceitos que a gente viu até agora e um preconceito específico que é essa normalização estatística do indivíduo, como se os indivíduos pudessem ser representados na sua diversidade através de um mínimo denominador comum. É até uma redução por baixo, digamos assim, ao que seria comum a todos. Na verdade, essa redução acaba gerando uma figura bizarra que não se encaixa nenhuma pessoa, que ninguém se encaixa nesse usuário médio ou nessas pessoas que é um pouco mais sofisticado porque tem uma certa variedade, mas ainda assim não se encaixa, porque as pessoas são concretas e não abstratas. Cada história de vida tem as suas peculiaridades, que são completamente ignoradas nesse tipo de estratégia. Ela pode render e lucrar dinheiro para as empresas porque você consegue, através de testes AB, determinar qual é o tipo de interface que vende mais, mas isso certamente não vai gerar um envolvimento maior dessas pessoas com as causas, com os propósitos dessa empresa, que muitas vezes não existe. A propósito é simplesmente lucrar, mas as empresas e as organizações, em especial as universidades e os projetos que não visam lucro, estes precisam ter muito claros propósitos e saber que esse tipo de estratégia não coaduna com uma abordagem mais pluralística que permitiria que as pessoas vivessem com as suas histórias de vidas diferentes, sem preconceito. O por fim, o último preconceito e o mais escondido de todos, dentro da interação no computador, é aquele que reduz o conhecimento ao que é computável. E isso é utilizado em um argumento racional, do tipo, se eu não consigo computar esse conhecimento, ele está fora do âmbito da computação, tanto do ponto de vista da computação pragmática que você faz no software, então se eu não consigo traduzir para uma linguagem de software, de programação ou colocar no banco de dados, ele não é um conhecimento. Se ele não consegue entrar dentro dos cânones epistemológicos ou metodológicos da computação, ele não entra dentro do conhecimento acadêmico da computação. E vejam como isso se aparece todo dia, a gente utiliza uma interface, seja ela prompt de comando, ou seja, ela uma metáfora de desktop, que vai reproduzir conhecimentos do ambiente de trabalho do escritório estadunidense, de onde essas interfaces foram desenvolvidas há muitos anos atrás. Conhecimentos de outras culturas, que exigem outras formas de representação e que exigem outras formas de computar, eles são excluídos pela interface, que são criadas pelas profissionais, pelas pesquisadores ligados à interação humana no computador. E esse preconceito é muito difícil de superar, porque acredita-se que já foi atingido o mais alto grau de desenvolvimento das interfaces, porque agora nós temos interfaces mais avançadas, baseadas no paradinho Windows Icons, as janelas e tudo mais. Essa metáfora desktop é a mais desenvolvida, e por isso a gente não precisa mais pensar em outras metáforas que representem outros tipos de conhecimento. Precisamos sim, só que a saída para pensar outras metáforas alternativas ao desktop não é melhorar essa interface, não é melhorar a representação da cultura de escritório estadunidense, é pensar em articular outras culturas. Por isso, o estudo de culturas quilombolas, culturas originárias, ancestrais, é fundamental para a gente sair dessa estagnação que a interação humana no computador se encontra já há algumas décadas. Esses preconceitos que eu listei aqui não são os únicos, não são todos os preconceitos que existem em interação humana no computador. Isso é uma primeira abordagem, um primeiro rascunho sobre esse assunto, para engajar-se num diálogo através de eventos como esse que a gente tem aqui do Interações. Mas eu queria estender essa minha apresentação também para incluir resultados de diálogos que eu tenho tido, em especial com o professor Rodrigo Onzato, que está aí acompanhando no bate-papo, que vai apresentar amanhã e concluir essa discussão, talvez, talvez não, acho que ampliar, amplificar e complexificar ela. A gente tem discutido que esses preconceitos, sim, justificam machismo, racismo, capacitismo, classismo e homofobia, tal como mostrou Robson e Englermi ontem. Porém, aqui tem um exemplo, assistentes de voz femininas. Por que os assistentes de voz têm que vir com voz padrão feminina? Porque o computador, lembrando, antigamente era originalmente o trabalho de uma mulher, e ele não é um ser humano, então a mulher não é ser humano, é menos do que humana no máximo. E os homens que têm que programar as mulheres, assim como programar as mulheres no computador também dá as ordens, a liderança para as mulheres dentro das empresas ou dentro do ambiente domiciliar. E isso individualiza o problema social de modo que quando se percebe que existe esse machismo, por exemplo, por trás da interface, ou manda-se embora o programador que fez isso ou substitui, põe ele em uma outra posição e traz um programador que tenha uma mentalidade mais aberta para isso. Mas isso não vai mudar a relação de opressão, ela vai continuar existindo. E ela talvez fique até mais escondida. Então, por isso é importante discutir de onde vem o preconceito. E a gente percebe também que existe uma opressão específica, além dessas que eu mencionei, e de outras históricas que existem também na nossa sociedade, que ela específica a interação humano-computador e que a interação humano-computador contribui muito para aumentar essa relação de opressão. Essa é uma descoberta que a gente tem feito a partir principalmente da tese do professor Rodrigo Gonzato. É uma interpretação que eu estou dando, esse termo "usuarismo" não aparece na tese de doutorado dele, mas eu coloquei para a gente engajar nesse debate mais amplo com as outras formas de opressão. Então, existiriam, historicamente, produtores de tecnologia, e aqui no caso, tecnologia computacional, que têm o privilégio de determinar como o computador vai funcionar. E do outro lado, existem os usuários, um grupo social que tem a necessidade de usar o computador para realizar uma atividade. Então, eles vão ter que se submeter às regras, à proteção, à simplificação, à explicação que os produtores fazem de como funciona aquele computador através da interface. A interface acaba sendo a expressão do usuarismo. Porém, os usuários podem reagir a essa opressão através do abuso, que é usar aquilo para... Além do que foi feito para ser usado. A gambiarra é a tradução do "hacking", para o português, e a subversão das lógicas de interação que foram colocadas. Esse conceito de usuarismo ainda não está completamente consolidado. A gente está tentando desenvolver ele a partir da perspectiva do feminismo interseccional, que coloca que as opressões não acontecem separadamente, e que uma mesma pessoa pode ser vítima de várias opressões ao mesmo tempo. Então, uma mulher negra, deficiente, que é de uma classe social menos abastada. Além disso, ela sofre racismo, machismo, ela sofre o capacitismo, ela também sofre preconceito específico da manualidade, que é o preconceito do usuarismo, que a gente tem chamada. Então, a manualidade é esse conceito, da maneira como uma pessoa constitui historicamente a sua relação com o seu ambiente, usando ferramentas e tecnologias, como o computador, para se constituir enquanto ser, se produzir enquanto ser. Cada um vai construindo coletivamente a sua manualidade pelo que a sociedade oferece, pelo que a cultura oferece, mas essa pessoa também desenvolve a sua maneira particular de desenvolver e constrói a sua manualidade, o seu projeto de existência. Essa manualidade, muitas vezes, é objeto de um preconceito, aí sim, de que subestima essa pessoa com a capacidade de produzir a tecnologia. O usuarismo é o preconceito de que a pessoa só pode usar, ela não pode produzir a tecnologia, e que o uso não é uma produção de tecnologia. Usar não é produzir tecnologia. E quando a pessoa usa, ela acha que ela tem que usar do jeito que ela deveria, foi projetado para ser. E aí surge uma estética, que o design contribui muito, que é uma estética que faz as pessoas se sentirem feias, se elas não estiverem interagindo do jeito que foi projetado para ser. Isso normalmente acontece quando essa pessoa é desprivilegiada por estar fazendo parte de outros grupos que já são oprimidos historicamente na sociedade. Então, se sentir burro na interação no computador não é um problema individual seu, não é um preconceito que você tem contra você mesmo apenas, mas é uma relação historicamente construída que te faz sentir burro para justificar que existam outras pessoas que produzam a tecnologia mais inteligentes que você. Então, esse usuarismo envolve uma hierarquia de conhecimento entre usuários e produtores. E ele se espalha através das interações que os próprios usuários têm uns com os outros. Então, os usuários encarnam esse preconceito e tomam aquilo como sendo correto, não um conceito correto, mas ele é falso. Então, por exemplo, eu postei um vídeo de uma análise de usabilidade de uma balança eletrônica que um estudante meu fez numa aula. E esse estudante estava testando para mostrar que essa interface tinha vários problemas da balança. E aí os usuários do YouTube começaram a criticar a nossa análise, sem entender qual era a sua proposta. E dizer que nós é que estávamos errados, porque nós éramos burros e idiotas que não tínhamos lido o manual de instruções daquela balança eletrônica. E não tem como você usar uma balança eletrônica sem respeitar o projeto de quem fez. Ou seja, muitas pessoas utilizando argumentos extremamente preconceituosos, usando, inclusive, argumentos, por exemplo, gordofóbicos, em relação às pessoas que estavam usando, os alunos, dizendo que eles eram gordos e o gordo não sabia usar a balança eletrônica, por isso que estavam tendo dificuldade. Esse são preconceitos, vejam como o preconceito do usuarismo dá lugar a um preconceito da gordofobia. E a opressão mais ampla, que é histórica, que não aparece apenas aqui, aparece em diversos outros momentos. Então essa interação feia é criada pela própria estética, o projeto estético das interfaces, ele vai enfatizar essa opressão. Por isso a gente tem chamado isso de estética do opressor, utilizando o trabalho do Augusto Uol, que se inspirou no Paulo Freire, que faz parte desses estudos latino-americanos de opressão. A gente tem buscado desenvolver estética de oprimido a partir do combate ao usuarismo. O usuarismo seria então essa opressão que reduz pessoas a meros usuários, sem corpo, sem voz, sem história, sem direitos, mas com muitas necessidades que podem ser supridas pela tecnologia dos produtores privilegiados. Então aqui vocês veem um quadro rápido de como a gente vê no nosso dia a dia e na própria academia esses termos serem transformados, serem reduzidos. O cidadão é um usuário de um serviço público, o eleitor, usuário de redes sociais, o trabalhador, usuário de plataforma, estudante, usuário de serviço educacional, paciente, usuário de serviço de saúde, deficiente, usuário de tecnologia assistiva, imigrante, usuário de aplicativo de tradução, mulher, usuário de aplicativo menstrual, gay, usuário de sistema de namoro, negro, usuário de transporte público, pobre, usuário de tecnologias de baixo custo. E vejam que essas reduções, elas estão propositadamente aqui nesse slide mostrando como um preconceito vai dando origem ao outro e vai escondendo cada vez mais o preconceito. Porque através de um usuário, o usuário não tem história, não tem política, então ele não precisa demandar que uma opressão seja combatida na sociedade. Afinal de contas, a única coisa que ele precisa é de mais usabilidade. Então vamos facilitar o serviço público, facilitar as redes sociais, todos os problemas das opressões vão se resolver, não vão. E a categoria usuário pode ser usada de maneira funcional, mas ela pode ser usada de maneira política também. Então quando a gente critica o usuarismo é também para a gente afirmar o conceito de usuário e não jogar ele para trás. Substituir o termo usuário por humano, centrado no usuário, não, agora é centrado no ser humano, ou por pessoa, centrado na pessoa, ou centrado no utente, qualquer termo que você utilizar não vai por si só acabar com a opressão magicamente. Eu acho muito mais interessante manter a categoria usuário e politizar ela, de modo que os usuários também tenham direitos dentro dessa relação de opressão de conquistar privilégios que os foram negados ao longo da história da computação. Se todo usuário, se todo uso da tecnologia envolve algum tipo de projeto, como diz o professor González na sua tese de doutorado, aí a HCLAA poderia apoiar projetos que fossem criados pelos próprios usuários. Esse é um conceito muito interessante que o Matheus Pelanda, que hoje está fazendo o mestrado no PPGT, aqui na UTFPR, que foi meu estudante de iniciação científica, aqui no design, ele criou o conceito de infraestrutura, ou melhor dizendo, infra design, para definir esse projeto que é feito pelo próprio usuário, um projeto invisibilizado e que pode ser apoiado pelo projeto metaestrutural, um projeto que é feito pelos profissionais de interação no computador. Isso não é novidade, na verdade, esse apoio já é uma característica histórica do design participativo, o Pelén já falava sobre combater esse preconceito contra o usuário não ser capaz de produzir a sua própria existência a partir da computação e o design participativo não é uma inclusão do assim chamado usuário dentro de um projeto já existente, pelo contrário, é o apoio da computação e dos profissionais que trabalham com computação aos projetos que os usuários já tinham interesse em desenvolver. No caso da tese de doutorado do Pelén, ele descreve como que o design participativo apoia os projetos de sindicatos de defesa dos direitos dos trabalhadores lá na Escandinávia. Embora o Pelén tenha citado o trabalho do Paulo Freire, na pedagogia do Primido especificamente, o design participativo até mais ou menos os últimos anos não estava questionando outras opressões além do usuarismo, que é a própria da interação no computador, e do classismo, que tem a ver com a posição dos sindicatos, que estavam combatendo o confronto entre os capitalistas e os trabalhadores. Existem várias outras opressões, para combater essas várias opressões que eu mencionei aqui, é preciso ter uma pedagogia crítica inspirada aí do Paulo Freire, Augusto Ball e vários outros que trabalham com esse conceito de opressão histórica, culturalmente situada. E eu e o professor Gonzata, a gente tem escrito bastante sobre isso, temos uma publicação bem recente na Digital Creativity em que a gente descreve o Ateliê Antropofágico, que é uma proposta que a gente vinha desenvolvendo na PUC do Paraná, de tentar combater as opressões de uma maneira através da arte, através da interação, através do projeto criativo, que não exclui as questões difíceis, os conceitos difíceis de trabalhar, são trabalhados através de um processo lúdico, que não simplifica, nem torna menos sério essa análise das opressões. Seguindo a tradição da antropofagia, que é um conceito cultural fortíssimo aqui no Brasil, que se manifesta nas várias artes que nós temos, como a música, a pintura, a literatura e por aí vai. E esses conceitos que eu propus agora da Pedagogia Crítica têm sido desenvolvidos de maneira muito mais ampla e profunda dentro de um grupo aberto, uma rede, chamada Design Opressão, que eu faço parte, o professor Gonzata faz parte também, que tem o link aí nos slides, qualquer um pode participar, designoppressão.org, toda terça-feira à noite nós se reunimos para discutir e ler textos que relacionam design opressão. De vez em quando a gente faz uma live de síntese através do YouTube, já tivemos uma live sobre François Nomb e o colonialismo no design, Paulo Freire e a educação bancária no design, e também o bancarismo no próprio projeto de inovação, em especial a critical design thinking, e outras abordagens aí que vão simplificar o projeto para que o designer seja o salvador do usuário. Então é muito bacana esse grupo, quem tiver interesse em discutir mais esse assunto, fique à vontade de nos juntar. Aqui tem algumas referências bibliográficas para quem quiser conferir essa discussão. E é isso, gente, muito obrigado, Beatriz, Anfitriã, que estamos ajudando aí com essa apresentação. E agora eu fico à disposição para a gente ampliar o debate através do bate-papo. Muito obrigado.