Design autogestionário, experiências e prospecções. É uma fala sobre uma trajetória bastante longa de buscar a autogestão como um paradigma, uma maneira diferente de fazer design e, com isso, gerar autonomia entre organizações que buscam essa relação com si própria e com o seu ambiente onde está inserida. O que seria autogestão? Bom, a visão hegemônica mais conhecida é a capacidade de um indivíduo ou de um coletivo digerir as suas próprias atividades de maneira sustentável sem a necessidade de um gestor ou chefe. Assim como uma pessoa que participa de uma empresa, das decisões dela, acaba sendo oferecida, por exemplo, em troca desse engajamento, uma participação nos lucros e nas decisões estratégicas. Um livro que expressa essa visão é escrito por um empreendedor brasileiro que é mais conhecido às vezes fora do Brasil do que aqui, que é o Ricardo Semmler e o livro "Virando a própria mesa". Ele fala da autogestão não como uma virada política ampla no modo de produção, mas sim numa atualização do capitalismo para se tornar mais produtivo e se apropriar também da produção intelectual dos trabalhadores, de modo que o gestor não seja uma especialidade de certos trabalhadores, mas sim uma habilidade desenvolvida por todos os trabalhadores. Autogestão pode ser entendida, daí, numa perspectiva contra-hegemônica, como uma mudança completa da maneira como a sociedade organiza a sua própria produção. Então, isso dentro do socialismo é visto, e também do anarquismo, é visto como uma maneira diferente de se conectar grupos e unidades e fábricas a produzir aquilo que outras pessoas vão querer consumir, utilizar de maneira autônoma, sem uma dependência de uma multinacional, de um estado centralizador. Um dos poucos países que conseguiu desenvolver autogestão dentro de um regime socialista foi a Iugoslávia, e Henri Lefevre, um sociólogo francês, estudou as práticas de autogestão na Iugoslávia e participou de um projeto, de um redesenho da cidade, um plano diretor da cidade de Belgrado, que é a era capital da Iugoslava na época, implementando as ideias de autogestão que são mais abstratas, tem a ver com relação de trabalho, ele transformou essas ideias em ideias que poderiam ser materializadas numa cidade, no planejamento urbano da cidade, de modo que a cidade pudesse se autogerir, ao mesmo tempo servir como uma infraestrutura para vários negócios autogeridos. Então, é uma possibilidade de uma sociedade em que cada unidade produtiva tenha sua propria unha para atender os seus próprios desejos e atender os desejos dos outros, sem necessariamente depender de uma troca financeira, que gera uma fuga de capitais, que é uma característica, por exemplo, do capitalismo em rede, capitalismo globalizado. Então, autogestão é uma visão alternativa para o futuro da sociedade, mas que ainda está um pouco distante, bem distante, na verdade, do que a gente vivencia hoje. Dentre as visões socialistas, tem uma que é mais gradual, transicional, que é, por exemplo, a economia solidária. A economia solidária visa criar circuitos econômicos alternativos ou complementários ao capitalismo, sem esperar pela revolução que substitua o capitalismo pelo socialismo. Então, eles fazem um trabalho, lidam com a economia solidária, de conscientização de uma determinada comunidade local para que elas percebam a produção de capital e não deixe esse capital fugir para outras comunidades, em especial para o mercado financeiro global. Então, eles utilizam, muitas vezes, moedas sociais próprias, cunhadas pela própria comunidade, para evitar essa equiparação, por exemplo, a moeda socialista, que é muito importante, e a necessária, e não tão consciente, equiparação do trabalho de um trabalhador local no Brasil, por exemplo, interior do Brasil, com um trabalhador local na China, com outra condição socioeconômica, e graças à equiparação financeira do trabalho, o produto acaba, produzido por esses trabalhadores, acaba sendo comercializado com o mesmo valor de uso que tem a ver com as características locais da comunidade. Eles vão pautar-se pela solidariedade, enquanto um princípio básico de convivência, visando o bem viver, que seria uma sociedade em que todos trabalham para ter uma vida tranquila, boa, não necessariamente uma vida de autoconsumo, de autoconforto, mas uma vida que todos estão sentindo bem. E isso se dá a partir desse comércio justo, baseado em moedas sociais, ou não, mas em todo caso, pelo menos muito comprometido com as condições de trabalho dos trabalhadores. A autogestão entra como um dos recursos fundamentais utilizados pela economia solidária. Então veja, ela não espera a revolução e ela dialoga com o capitalismo, mas ela prepara também a base e aumenta a disseminação de práticas socialistas dentro de uma sociedade capitalista que pode se tornar uma sociedade em transição para o socialismo, ou para uma sociedade que teria outros valores, além diferentes, até mesmo da socialista, porque afinal de contas, a solidariedade, enquanto um princípio básico de organização social, não estava em pauta quando, por exemplo, vislumbrou a União Soviética e outras implementações do socialismo. Então a economia solidária, ela já se adianta a próximos movimentos que estão, por exemplo, organizados a partir de princípios como o Bem-Viver, que vem das comunidades indígenas latino-americanas. No caso do Brasil, a autogestão, ela se mistura muito com a economia solidária e ela tem alguns princípios básicos bem simples que podem ser implementados por qualquer coletivo que queira desenvolver-se autonomamente e desenvolver-se de maneira distribuída, que não seja só um líder que vai se desenvolver, os outros vão a rebock, né? Para isso, a autogestão parte do princípio que todo mundo tem que fazer tudo, então há um rodízio de tarefas, não há um espaço, um incentivo para uma especialização, para uma exclusividade, para que uma pessoa seja o especialista naquela área, seja o diretor daquela área, todo mundo troca a tarefa de tempos em tempos, dessa maneira todo mundo tem uma visão global, uma totalidade daquele trabalho e daquele processo de trabalho que é um dos grandes problemas do capitalismo, alienação, né? Você só entender como é que aperta o parafuso e não saber qual máquina que você está produzindo nem tampouco para que serve essa máquina na sociedade depois que ela for colocada no mundo, né? Uma das maneiras de organizar esse processo de rodízio é a divisão em grupos de trabalho sem necessariamente ter hierarquias, horizontalizada, então cada grupo de trabalho cuida de uma questão, mas as pessoas migram de um grupo de trabalho para o outro, elas fazem um processo de rodízio, como estava mencionando. Agora, as decisões globais que interessam ao coletivo como todo, elas têm que ser tomadas somente em assembleia, então não dá pra, na autogestão brasileira, você não vai encontrar, por exemplo, um GT, um grupo de trabalho direção, chamado direção, um grupo de trabalho que toma as decisões de cima para baixo, verticalizadas, você vai ter no máximo um grupo de trabalho de coordenação dos outros GTs que vai organizar as assembleias para, e sim, essa decisão ser tomada em coletivamente. Então, decisões assembleadas são muitas vezes longas, demoradas para se tomar, mas têm os chamados encaminhamentos práticos. Um livro que explica isso é o Gestão Compartilhada para Empredimentos Econômicos Solidários, trabalho desenvolvido pela incubadora TecSol, aqui da UTFPR, em parceria com uma estudante de design gráfico, a Luciana Hulli, que ela fez o projeto gráfico e também a escrita participativa desse livro, um exemplo muito interessante também já para começando a aproximar a autogestão do design. Vou falar mais sobre ele aí pra frente. Para começo de conversa, o que design tem a ver com tudo isso? Por que a autogestão é interessante para o design e talvez o design seja interessante para a autogestão? Em primeiro lugar, porque o design materializa desejos em produtos produzidos em massa que fazem mal para a saúde e para o ambiente, ou seja, o design estimula as pessoas a consumirem aquelas coisas que elas não querem consumir, comprar coisas que elas não têm dinheiro para comprar e, muitas vezes, quando elas comprem o produto, elas nem usam mais e descartam muito cedo. Então, há um indício gigante que gira capital na sociedade, parece que a economia capitalista vai bem, mas ela acaba produzindo uma bolha que, de tempos em tempos, ela estoura e causa desemprego em massa e, às vezes, outros problemas sociais mais graves. O design também maquia, esconde, engana as pessoas sobre as estruturas básicas de produção que estão por trás desses produtos. Então, hoje nós podemos notar uma concentração de várias marcas em torno de grandes empresas no setor alimentício. Se você conseguir olhar para o que está por trás de cada produto, você vai ver que, no mundo inteiro, a produção de indício é dominada por um número de empresas que cabe em duas palmas da mão. E essas empresas são muito poderosas e acabam abusando, muitas vezes, desse poder, por exemplo, colocando produtos agrotóxicos disponíveis para o consumidor porque é mais barato e porque, às vezes, até gera um tipo de dependência também que é que interessa essas grandes empresas. Então, essas empresas aproveitam dessa globalização do capitalismo para ludibriar os seus clientes achando que eles estão comprando de um produtor local. As marcas parecem e dialogam com elementos locais da cultura, justamente para que o consumidor ache que ele está comprando o Danoninho. O Danoninho, é uma terminação bem típica do Brasil, você acha que Danoninho é brasileiro, mas, na verdade, Danoninho vem de uma marca chamada Danone, que tem sua origem na França, mas que tem atuação no mundo inteiro. Então, esse é só um exemplo de como designers contribuem para gerar mais alienação entre os consumidores e distanciá-los da compreensão das origens das coisas que elas consomem e do impacto ambiental e social do que ela gera quando ela escolhe consumir dessas grandes marcas. Então, resumindo, o design hoje é considerado uma competência estratégica para convencer as pessoas da necessidade da heterogestão, essa gestão que vem de fora para dentro, gestão que é feita por um especialista ou por uma outra empresa ou por um outro país, no caso de uma relação imperialista ou colonialista, o tal do business design, design thinking, design de negócios, design estratégico, são todas abordagens que vão enfatizar essa relação de diferença entre um especialista que sabe o que está fazendo e aquele que trabalha e que não sabe o que está fazendo. Então, o design, infelizmente, ele tem contribuindo para o capitalismo de maneira acrítica. Agora, esse design heterogestionário, vamos contrastar ele com design autogestionário. O design heterogestionário é feito por designers, trabalhando como gestores ou como conselheiros dos gestores, utilizando seu conhecimento de especialista para dizer aos outros o que fazer, gênios criativos ou como gestores capazes de reconhecer a criatividade dos outros. Parece tudo muito bacana, muito virtuoso dentro de uma doutrina capitalista em que a pessoa só tem valor se ela tem capital. Se ela não consegue galgar essa estrutura social e dominar esse capital, ela não tem valor e ela é tratada como se ela fosse um objeto, uma ferramenta nas mãos de os outros. A heterogestão, ela trabalha com o trabalhador, ela lida com o trabalhador como se ele fosse um recurso humano e é por isso que nós temos na maioria das empresas esse departamento de recursos humanos lidando com pessoas como se fossem nomes em contratos e sistemas burocráticos e não pessoas completas que têm histórias de vida, que têm lutas, que têm interesses, desejos e por aí vai. Autogestão, ela vai promover e vai estimular a gente a pensar um design autogestionário. E a pergunta é, será que ele já existe? Sim, ele já existe porque os coletivos que fazem autogestão também fazem design, só que esse design deles não é reconhecido como design. Então o design autogestionário não vai se parecer em nada com design heterogestionário. A gente vai mudar completamente a base do que é gestão e também a base do que é design quando vai para o design autogestionário. Em primeiro lugar, ele não é feito por designers, ele é feito por o que eu chamo de usiners, usuários designers, ou seja, designers amadores, para usar uma outra palavra, pessoas que não têm informação em design, mas ainda assim projetam porque precisam projetar. Esses usiners, eles projetam aquilo que a comunidade precisa com que tem a mão. Então se você tem o Photoshop, você vai usar. Agora, se ninguém tem o Photoshop, vai usar o Paint, o Microsoft Paint e vai fazer o projeto gráfico ali com que tem a mão e com os conhecimentos que sabem. Se não tem a condição financeira para contratar um designer especialista que vem de fora para dentro, que vai implementar um método gestão do design, no design autogestionário, isso aí, mesmo que tenha o recurso financeiro, às vezes é visto como negativo, porque esse sujeito que vai vir de fora para dentro não vai se engajar com os processos internos e não vai, por exemplo, promover uma criação coletiva de que todos do coletivo autogestionário participem. Isso é muito importante porque daí ninguém vai ter a sensação de autoria e também não vai clamar para si os louros e vai, digamos assim, quebrar o processo autogestionário, por exemplo, se colocando como o grande criativo, o grande líder que implementou a visão de autogestão. Isso é contraditório, isso com o tempo pode minar o processo autogestionário. E outra diferença importantíssima é que a aprendizagem dentro do processo de design autogestionário ela é fundamental, porque para que todo mundo faça design, todo mundo tem que estar aprendendo e se desenvolvendo enquanto designers. Então a aprendizagem que no caso do design heterogestionário é um produto que você compra fazendo um mini curso ou às vezes uma faculdade que gera um diferencial competitivo ou mesmo um item no currículo mais um número, no caso do design autogestionário isso precisa ser compartilhado para que seja uma posse coletiva de que a comunidade aprendeu, inclusive até existe o tema aprendizagem organizacional para se referir especificamente essa aprendizagem que é feita por coletivos e não para sujeitos individuais. Quando a gente olha para esse design autogestionário a primeira impressão para quem tem uma formação de heterogestão no design é que é um design feio. Você olha e fala "é horrível isso aqui". Aqui eu estou mostrando algumas logos que foram criadas por coletivos autogestionários e compartilhadas na plataforma sirandas.net que é uma espécie de diretório de catálogo de empreendimentos solidários espalhados pelo Brasil. Então você observa e percebe como designer heterogestionário um amadorismo, uma utilização de formas que não têm uma preguinância muito forte e não segue as leis da Gestalt, a teoria da cor é completamente errada porque não vai se adaptar de repente a diferentes superfícies e necessidades de impressão com baixo custo e por aí vai. Então tem uma série de problemas técnicos que é fácil de perceber. Agora o difícil de perceber para quem vem da heterogestão é o significado social de conquista que representa essas logos. É um esforço muito grande de um coletivo que não tem designers formados produzir essa imagem que representa a história dessa comunidade para outras comunidades que serve como uma porta de entrada, como um cartão de visitas, que serve como um símbolo dentro de uma luta para reconhecimento da economia solidária. Então essas logos elas têm diálogo muito fortemente com os locais em que essas comunidades estão assentadas. Elas mais ainda do que as logos das empresas que tentam enganar os consumidores, essas daqui elas são autênticas porque esses empreendimentos eles não são globalizados e nem vão se tornar globalizados. Não estão dispostos por exemplo a serem comprados por uma multinacional, eles resistem a isso, eles querem estar fortemente vinculados com o local visando realizar a ideia da autogestão enquanto uma mudança no modo de produção capitalista ou até visando a transição para o socialismo gradual. Então eles vão ter outros parâmetros para serem representados nas logos e isso precisa ser reconhecido quando você quer entender o design autogestionável, de que essas logos são lindas, são maravilhosas para aqueles que projetaram e eles expressam de maneira muito perspicaz os valores que esses coletivos têm, muito mais do que o valor de que um consumidor vai querer consumir e achar que é bom. Não é uma relação de heterogestão do consumidor, é uma relação de autogestão desse coletivo, é o que o coletivo quer mostrar para o mundo. Isso se reflete também no design de rótulos, nas embalagens que os coletivos e empreendimentos solidários produzem e aí a gente começa a perceber características em comum, essas rótulos eles não vão tentar enganar o consumidor, iludibriá-lo com ideias, conceitos e valores abstratos e distantes do local. Comparem por exemplo a geléia de maracujá da Caatinga produzida pelo empreendimento graveteiro com a geléia de damasco produzida pela multinacional Queensberry. Essa marca Queensberry, no começo de conversa, é uma palavra em inglês que faz referência a uma realeza que são valores que no Brasil a gente nem tem mais. Na Inglaterra você pode até falar de realeza porque ela ainda existe, no Brasil a gente já não tem mais realeza há quase dois séculos. Além disso, você tem uma série de elementos no produto heterogestionário que tentam criar um ar de autenticidade, mas é falso. Então você tem classic, você tem 100% natural, você tem extra premium e todas essas atribuições e qualificativos foram dados da empresa para si própria. Quem que deu esse selo? Ela mesma. Agora comparem com a geléia de maracujá da Caatinga do graveteiro. Você tem ali um selo de autenticidade produzido, oferecido, pelo outro coletivo, uma entidade sem fisburo criativos que é a Orgânico Brasil que oferece esse selo em troca de uma malditoria no processo produtivo para ver se realmente é uma produção orgânica. Então é uma credibilidade que é dada por outro de maneira que você confia mais e porque você olha para esse rótulo e percebe que ele é honesto, ele não tenta parecer ser o que ele não é. Vejam como a filosofia da autogestão expressa no design gráfico da embalagem de maneira muito perspicaz e essa beleza muitas vezes não é vista quando se está acostumado a ser enganado o tempo todo, que é o caso do design gráfico heterogestionário. Então é preciso mudar o paradigma de design para pensar e fazer um design autogestionário. Aqui eu tenho uma síntese rápida das características visuais desse design autogestionário. Ele enfatiza a origem do produto, mostra como um diferencial, distingue-se das grandes corporações pelo alto contraste entre cores, formas complexas sobre fundos simples, descrição do produto em destaque e referências a produtos caseiros e coloniais. Se design autogestionário é feito por designers, será que designers podem participar também ou não é possível você fazer design autogestionário se você é formado em design? Será que a gente está fadado a sempre ficar distante desses coletivos, dessas discussões? Bom, eu acredito que não, eu acredito que é possível a gente participar do design autogestionário, mas a gente não pode trazer o design heterogestionário a reboque ou escondido ou como um viés nosso que a gente não consegue criticar. Precisa fazer a autocrítica e uma das maneiras de participar desse processo é conhecer as visões contra-hegemônicas do próprio design, que já se aproximam do design autogestionário. Por exemplo, o design participativo, que tem uma tradição já bastante antiga, começa a partir do trabalho do Paulo Freire, vai se desenvolver mais na Dinamarca e depois volta para o Brasil através de movimentos como o design livre, o design em antropologia e vários outros que vão aproximar o design dessa prática crítica. A gente fez uma oficina em 2015 na PUC do Paraná com a incubadora Trilhas, que trabalhava com coletivos de artesães espalhados aqui pela região metropolitana de Curitiba para recuperar a história dos empreendimentos delas e criar uma identidade visual que tivesse propriedades de produção em massa melhores, por exemplo, que pudesse ser impressa como um rótulo, que pudesse ser usada em materiais de divulgação e por aí vai como a gente faz no design heterogestionário, porém aqui mudando o propósito, mas também mudando o processo, o meio, muda-se os fins, muda-se os meios de trabalho. Então a gente usou Lego, fizemos Lego Series Play para contar a história do empreendimento, depois a partir desse Lego a gente fez uns esboços e aí rolou um processo de aceitação do desenho amador, aceitação das linhas e foco na abstração, ou seja, na intenção do que quer ser representado, a discussão de alternativas diferentes para o empreendimento, a tentativa de conectar essas alternativas para construir algo coletivamente que sintetiza as diferentes visões, recortes, colagem e várias outras linguagens que a gente pode utilizar para que pessoas que não sabem projetar logos tal como designers profissionais fazem, consigam participar de uma discussão e consigam sim antecipar um briefing muito bem detalhado do que elas querem para as suas identidades. Então o resultado final dessa oficina não foi uma logo pronta, mas um rascunho mais menos desenvolvido de necessidades e interesses para aquele coletivo. Então essas logos solidárias e livres, elas podem se desenvolver, puderam, algumas delas foram desenvolvidas, outras não, mas o mais importante é que os participantes dessa oficina aprenderam que design é uma coisa que elas já fazem e que elas podem fazer de maneira mais consciente. Então essa intervenção, essa participação de designers, no caso de eu e alguns outros estudantes de design que participaram dessa oficina, ajudou a reconstituir uma confiança que os coletivos tinham em si próprios. Uma das participantes dessa oficina foi uma estudante nossa da UTF Perre, a Helena de Silva, e ela participava dessa feira permanente de economia solidária, que expõe seus trabalhos no MoMA, no museu aqui do Portão Cultural, na frente do Portão Cultural, e ela resolveu se inspirar nesse processo que ela participou para fazer um processo parecido dentro da feira para o redesenho da identidade visual dessa feira. Ela transformou esse engajamento popular que ela tinha com essa causa num tema de TCC. Então tem um trabalho muito bacana sobre design participativo na economia solidária, que ela até chama de design emancipatório, no TCC dela, que pode ser encontrado nos nossos arquivos da biblioteca da UTF Perre. Seguindo os passos da Helena, a Luciana Erulic projetou participativamente aquele livro de gestão compartilhada que eu tinha mostrado para vocês anteriormente. A Luciane leu o que a Helena fez e ela propõe um processo que teve mais elementos, que foi mais intensa a participação, teve muitos momentos, muitas reuniões, muitos processos em que pessoas que normalmente não estariam participando do design por ser uma questão técnica acabaram participando sim, porque a questão técnica também é política, é uma questão de conscientização das decisões feitas a respeito dos objetos materiais que são utilizados na sua manualidade, ou seja, no seu entorno material. Então esse livro expressa o conhecimento desse coletivo e não o conhecimento da Luciane de forma, por exemplo. Ela participou não só da forma, não deu forma apenas ao livro, do projeto editorial, envolveu a escrita do livro, colaborativa, ela organizou o processo de escrita colaborativa entre os vários autores, ela escreveu também. Isso quebra paradigma completamente da ideia de que design é só lidar com a forma, dar uma forma para uma função. Nesse caso a divisão entre forma e função nem faz muito sentido porque, como eu disse, impera a ideia de rodízio, de que todo mundo faz tudo e todo mundo vai mudando e entendendo a realidade buscando uma totalidade que não pode ser quebrada em elementos como forma e função, estrutura e por aí vai. Esses elementos podem aparecer sim como interligados e é exatamente isso que o projeto tentou desenvolver. Bom, até aqui eu mostrei projetos que parecem desvinculados da ideia, uma prática que se sustenta no mercado capitalista brasileiro de design. Quando se pensa em design, se pensa em escritórios de design que atende a clientes de grandes empresas capitalistas e é isso que dá para fazer e pronto. A rede design possível é um empreendimento solidário em design que já tem atendido clientes como movimentos sociais e pequenos empreendimentos há décadas. Então eles já estão mostrando que é sustentável, é possível você trabalhar como um empreendedor nessa área e ao mesmo tempo manter a autogestão como princípio básico de trabalho. Então esse exemplo da rede design possível ajuda a quebrar o preconceito de que não é possível fazer isso e que não existe um outro lugar para designer estar na sociedade, ou não sei, aumentando o poderio do capitalismo de exploração do trabalho objetivo e da subjetividade do consumidor. Só que resta a pergunta, comparando os trabalhos anteriores, será que dá para fazer algo além de produto e gráfico no design autogestionário? Eu acredito que sim, que a gente na verdade precisa dar esse próximo passo de pensar um design autogestionário de terceira e quarta ordem. Esse aqui é um modelo que foi proposto pelo Richard Buchanan, um pesquisador da área de design que organizou os principais conceitos da pesquisa em design em quatro ordens. Ele percebeu que existia uma primeira ordem focada no design gráfico, focada no informação, depois na segunda ordem focada em experiência e o design de produto, o capitânio, é um exemplo de um tipo de projeto que focaliza na experiência do usuário. Depois ele percebeu que existia uma terceira ordem que estava se estabilizando na época, nos anos 90, quando ele começou a estudar o assunto, que era focada em interação, mas ele vislumbrou também uma quarta ordem focada em relações, ou sistemas, modelos de pensamento, que é mais abstrata, mais ampla e envolve vários objetos, que é o que a gente tem chamado aqui na UTF-PR de design prospectivo. Embora existam muitos problemas de primeira e segunda ordem, ou seja, gráfico e produto, coletivos autogestionários enfrentam também muitos problemas de terceira ordem e interações. Por exemplo, o sirandas.net, que é esse diretório, esse catálogo de empreendimentos solidários, ele tentou fazer uma rede social autogestionária, mas ele está parado há muitos anos. Uma atualização foi em 2016 por falta de recursos, porque uma rede social é um custo muito caro para se manter e precisa de atualizações constantes e eles não necessariamente tinham esses recursos, principalmente depois que o governo federal parou de destinar recursos para estimular a economia solidária no Brasil. O governo federal estimula o agronegócio, estimula a economia heterogestionária, mas não estimula a economia solidária, infelizmente. Mas isso é um movimento que ainda tem força e que possivelmente no futuro próximo possa mudar essa orientação. Então, para isso é importante que os coletivos se conscientizem de que mesmo que o sirandas.net seja mais lento e seja desconfortável de usar, ou seja, não tenha uma boa usabilidade, ainda assim ele é uma ação de resistência à dominação imperialista ou colonialista digital que ocorre através das grandes corporações de TI vindas principalmente dos Estados Unidos, as chamadas GAFAM, Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. Essas empresas elas dominam o mercado de TI global e elas geram uma relação de dependência, que a gente tem que usar as ferramentas delas, porque senão ninguém vai querer trabalhar com a gente ou então a gente não vai conseguir pagar uma ferramenta nacional e a ferramenta nacional vai ser considerada inferior em termos de usabilidade. Então o design aqui entra como elemento fundamental de um colonialismo digital, mas ele também entra como componente fundamental de uma reação a esse colonialismo. Então, primeiro para reagir precisa saber qual que é o problema, quais são os problemas de interação de terceira ordem que os coletivos auto gestionários enfrentam? Bom, são plataformas privadas para coisas públicas, que são esses empreendimentos solidários. Logo, o privado começa muitas vezes a entrar em conflito com o público e como o público não manda, o privado acaba dominando e o que se constrói coletivamente pode muitas vezes ser privatizado, ser destruído, porque aquele interesse privado não tem interesse no público. Então é um problema sério, há uma vigilância desses dados que os usuários estão colocando nessas plataformas sem accountability, que seria a possibilidade de uma auditoria, de crítica, de questionamento dos usos desses dados. Existem mecanismos de bloqueio e incompatibilidade para você levar os dados de uma plataforma para outra, que vão te tornando mais dependente daquela plataforma e por fim interfaces que facilitam interações efêmeras e dificultam interações de longo prazo. Esse talvez seja o pior problema, porque um coletivo de auto gestionário precisa ter visão de longo prazo, porque é lá que se realiza a sua vantagem. A curto prazo, a heterogestão é melhor, basta você chegar para um trabalhador e mandar o que ele tem que fazer, ele vai fazer na hora. Você vai ter o resultado e você vai pensar que ela é mais eficiente, mas a longo prazo, a auto gestão demora mais, ela é menos eficiente, mas ela é mais eficaz, porque o que se produz tem maior qualidade, tem maior valor e mais do que isso produz pessoas que se desenvolvem no processo. Então, perceber essa diferença é importante, mas se as tecnologias que estão sendo usadas para dar visibilidade ao trabalho e permitir a colaboração, se elas não enfatizam isso, o coletivo perde, é uma possibilidade de autoconsciência. Então, esse crescimento orgânico gratuito, ele tem um limite, né? As organizações que usam redes sociais não podem se tornar muito famosas se elas não pagarem anúncios para divulgarem e impulsionarem as suas postagens. Isso é um recurso financeiro que muitas vezes o coletivo auto gestionário não tem, mas ele tem o trabalho, só que esse trabalho não tem um valor econômico ainda. Então, tem valor dentro da economia solidária, mas não dentro da economia capitalista. Então, o que acontece é que os coletivos, eles têm que investir na produção de dados de qualidade para chamar a atenção dos potenciais usuários e ao fazer isso, muitas vezes acabam reproduzindo valores antitéticos com a autogestão, porque existe um bias, um viés das redes sociais de valorizar e de tornar mais visível o conteúdo que faz culto ao indivíduo, ostentação, comodificação e hierarquia. Todos valores opostos à autogestão. Então, o coletivo auto gestionário que tenta se gerir através de uma plataforma digital com esses vieses, ele tende a falhar, ele tende a se desfazer, ele tende a se converter numa heterogestão, numa próxima etapa do seu desenvolvimento, o que é muito lamentável. Então, o design auto gestionário, ele precisa estar consciente sobre os vieses desse colonialismo digital, mas também de um outro fenômeno chamado capitalismo de plataforma, que se alinha e que muitas vezes complementa o colonialismo digital na opressão ao qual pessoas do país subdesenvolvidos como nós no Brasil estamos sujeitas. Tem um livro muito bom lançado recentemente pelos pesquisadores Davidson, Faltistino e Walter Lippold, chamado colonialismo digital por uma crítica ráquea fenôneana, em que eles falam que os países subdesenvolvidos acabam dependentes de uma infraestrutura estrangeira para realizar as mais básicas operações como, por exemplo, trocar uma lâmpada de um prédio ou decidir quem vai ser o próximo presidente nas eleições. Essas infraestruturas extraem dados nas colônias, que são usados para gerar informações valiosas nas metrópoles, de maneira similar como se antigamente se extraíam recursos naturais, físicos, para ser transformados em produtos manufaturados e revendidos as colônias. Então, esse processo ainda se mantém, apesar da gente, essa relação se mantém, apesar da forma, da aparência dela ter se tornado outra e o colonialismo não ser tão explícito, mas ainda assim ele está presente e é por isso que nós precisamos de livros como esse. O capitalismo de plataforma, ele já é uma relação um pouco diferente, que não se limita às colônias, que acontece dentro das próprias metrópoles, mas que tem um elemento similar, que é a abstração dos sujeitos quanto produtores de dados. O trabalhador é visto como um trabalhador, um gerador de dados, uma fonte de dados e não mais uma pessoa. Isso é visto como se fosse uma mercadoria mais valiosa em larga escala, um novo petróleo, digamos assim. Aí, o que acontece que para dominar esses dados, para ter a posse sobre eles e o direito de utilizá-los para gerar lucros e inteligência competitiva, as empresas capitalistas de plataforma vão implementar a gestão heterogestionária, a tal ponto e tão bem escondida dentro dos sistemas, que o trabalhador passa a não se ver mais como trabalhador. Ele se vê como um usuário daquela plataforma ou no máximo um empreendedor que se utiliza dessa plataforma. Isso gera uma alienação tão grande que o trabalhador não pode nem mais se juntar a outros trabalhadores para organizar uma greve ou para gerar um movimento de trabalhadores, porque ele se considera um usuário. Então, acho que pode simplesmente parar de usar a hora que ele quiser, mas não, ele começa a se tornar cada vez mais dependente daquela plataforma e não só ele como a comunidade local e o país como um todo. Imagina, por exemplo, se o Brasil quisesse se tornar independente do WhatsApp, quisesse tornar independente do Uber, quantas atividades nossas parariam de funcionar quando a gente perdeu essa infraestrutura estrangeira. E pensem quantos valores a gente não está oferecendo gratuitamente para essas plataformas, trabalhando para outros países se desenvolverem. Então, quando a gente faz a crítica, isso é um problema, muitos autores e militantes do movimento esquerda, é que eles fazem a política ao capitalismo em plataforma, ao colonialismo digital, mas eles não se engajam e nem conhecem às vezes as iniciativas de criar alternativas, mesmo que ainda não tenha acontecido a revolução. Porque a revolução, claro, pode ser uma maneira de alterar todas essas estruturas de uma vez só, mas enquanto ela não acontece, e pelo contrário, a gente tem que pensar que a revolução também nunca acontece do nada. Tem que ter condições para a revolução acontecer e essas condições também são construídas com mudanças graduais, como a economia solidária que eu mencionei, como o movimento de autogestão e a disseminação de valores anarquistas, que não, que prescindem de uma revolução socialista e, por outro lado, também criam condições para que essa revolução aconteça. Uma delas é a discussão sobre software livre. A bandeira de software livre é muito importante para essa autonomia, para o design autogestionário, porque o software, ele oferece a liberdade, o software livre oferece a liberdade de utilizar o aplicativo, aquele código para qualquer fim, modificar inclusive esse código fonte e atender demandas específicas criando cópias customizadas para outros usuários. E esses usuários podem se tornar desenvolvedores, criadores de outros softwares. Ele pode ser, ele tem um processo de desenvolvimento que não é um desenvolvimento, há uma empresa só, uma organização, um país que produz para o outro, gerando dependência. Não, é um processo distribuído em rede, em que qualquer ponto dessa rede que usa o software também pode, impotencialmente, se transformar num polo desenvolvedor de software. Isso para um modo de produção capitalista é uma mudança enorme e, curiosamente, o software livre funciona dentro do capitalismo, só que é um capitalismo que corre em paralelo com a economia do presente, o gift economy, que é uma economia que as pessoas têm a troca financeira, então empresas que investem em software livre ganham dinheiro, mas elas também percebem que elas precisam doar algo para a coletividade sem a espera de um retorno financeiro a curto prazo, que é o chamado "o comum", "o bem comum" ou "common" em inglês, que é a licença que é dada para aquele software ser modificado. Pode ser usado para algo que vai interessar a empresa, pode ser usado para algo que não vai interessar a empresa, mas ela faz isso pela queridita que desenvolver a humanidade como um todo é prioridade em relação a desenvolver a si própria enquanto o empreendimento é traje gestionário. Logo, as empresas que trabalham com software livre são influenciadas também para ideais anarquistas e ideais da autogestão, mas nem todas. Essas empresas que desenvolvem o software livre começaram a se associar com coletivos que anteriormente trabalhavam em capitalismo de plataforma e que queriam se tornar independentes, por exemplo, grupos de entregadores que queriam ter o seu próprio aplicativo de entregas. E aí eles começam a construir esse movimento chamado cooperativismo de plataforma. Então, ao invés de ser uma empresa capitalista com a heterogestão, com um dono, às vezes tem uma sociedade anônima de investidores, nesse caso cooperativismo de plataforma, quem são os donos são os próprios usuários dessa plataforma e eles utilizam aí toda essa experiência de cooperativismo que tem no movimento socialista, no movimento de esquerda, para criar uma alternativa de gestão que funciona dentro do capitalismo, mas tem uma lógica interna diferente das empresas capitalistas, criando condições reais de produção concreta hoje que faz a gente acreditar que é possível transicionar para o socialismo. Então, a diferença principal do cooperativismo de plataforma é que elas são geridas pelos próprios trabalhadores e baseadas em software livre. Sem o software livre, essa empresa teria uma dependência muito forte de uma outra empresa que estaria gerindo a sua tecnologia de informação e poderia como eu disse em algum momento minar a iniciativa de autonomização desse coletivo. Uma questão que tem me interessado bastante nos últimos anos é como aplicar as ideias do software livre e do cooperativismo de plataforma no design autogestionário, fechando o ciclo e digamos, tendo todos os componentes necessários para um modo de produção alternativa, tem design, tem tecnologia e tem gestão. Bom, a gente na verdade já tem tentado responder essa pergunta antes mesmo dela ter sido formulada de maneira consciente entre as pessoas que participaram desse movimento. No Instituto Faber Ludens, que foi uma ONG que fundei com colegas de 2017 a 2012, nós desenvolvemos uma visão crítica sobre design de interação já a partir do software livre e a gente acabou abrindo um site que compartilhava todos os conhecimentos que a gente tinha sobre design de interação em creative commons, visando com isso que outras pessoas que não conheciam esse assunto pudessem conhecer e gerar um movimento de conscientização nacional para investir cada vez mais em design de interação. O resultado do Faber Ludens foi a formação de várias pessoas, centenas de pessoas que aprenderam, seja com os nossos cursos presenciais, seja com materiais que a gente compartilhou digitalmente e que acabaram se consolidando como profissionais do que uma área que hoje é conhecida como UX Design, mas nessa época era chamada de design de interação. A gente tinha uma uma ecologia de mídias, eram várias ferramentas de software livre que a gente instalava em diferentes servidores digitais ou então serviços proprietários, mas que tinham opções gratuitas para a gente poder conectar e fazer uma espécie de uma comunidade virtual. A gente não tinha nenhum programador na equipe, então a gente acabava dependendo do software livre quando a gente queria customizar alguma coisa e isso foi um processo de aprendizagem fazendo que muitas vezes gerava bugs, incômodos, mas que gerava também um conhecimento que ficava no nosso coletivo. Esse conhecimento vai gerar uma mudança na perspectiva do design de interação que a gente tinha. Influenciado por essa filosofia do software livre que vinha junto com os códigos, nós percebemos que a nossa relação com design era limitada a caixas pretas. O design, na época, era disseminado como se fosse um produto de uma genialidade, de um processo incrível que podia ser escondido a sete chaves, como era o caso da Apple. E a gente resolveu abrir essa caixa preta, olhando para movimentos que estavam se formando também na Europa, na mesma época, Makerspaces, Fab Labs e outras estruturas para um outro tipo de design, que no caso dos europeus chamaram de open design. A gente resolveu comer esse open design, seguindo a tradição da antropofagia, que já nos influenciava desde a fundação do Instituto Faber Ludens, que estava ligado ao movimento de cultura digital capitaneado pelo Gilberto Gil, do seu Ministério da Cultura, no começo do século XX, XXI, e toda a formação de uma infraestrutura de software livre na área de produção cultural que ele promoveu e a equipe dele também. Então a gente resolveu transformar o open design em design livre. E essa escolha da palavra livre é bem importante. A gente poderia chamar de design aberto, mas a gente chama de livre porque o conceito de software livre é o mais usado no Brasil do que o conceito de código aberto, porque a comunidade de tecnologia e informação fez uma leitura de que o conceito software livre estimula a pensar na questão política, enquanto o conceito de código aberto não. E o código aberto é uma visão mais comercial mesmo da abordagem, enquanto que o free software é uma visão mais politicamente engajada, não tão conhecida no âmbito global, mas muito conhecida no Brasil até mesmo por políticas públicas do próprio governo Lula, de incentivo ao software público, ser baseado em software livre e portanto a se vínculo do político com o tecnológico. Então o design livre se propõe a abrir a caixa preta para que outras pessoas participem e continuem o processo de design. Enquanto que o open design vai abrir a caixa preta do produto, o design livre vai abrir a caixa preta do produto e do processo que gera o produto, permitindo que a gente tenha participação em vários momentos e não só depois que termina o projeto, compartilhar o código fonte. Isso muda tudo e também se aproxima mais dos ideais de autogestão. Em 2011 o Instituto Faber Ludes resolveu criar uma plataforma para implementar essa visão de design livre e infraestruturar projetos livres. A gente usou um software livre chamado Drupal, que tinha uma infinidade de produtos para serem customizados, você plugava e modificava eles e eles se intercomunicavam, gerando novas funções inesperadas pelos criadores de cada módulo em separado. A gente tomou uma decisão de que a plataforma Corais adotaria uma transparência radical. Tudo que fosse produzido e publicado nessa plataforma seria acessível pela web sem login. Não precisava ter login não. Então isso gerava a possibilidade de um conhecimento das pessoas aprenderem com os projetos da plataforma Corais gigantesco. Agora para que isso se tornasse legal, haveria que escolher uma licença necessariamente Creative Commons, uma licença a todos os direitos reservados. Então a gente obrigou, digamos assim, aos usuários a terem escolhido uma licença desse tipo para poder participar da plataforma. Cada projeto na plataforma Corais tinha a sua disposição diversas ferramentas colaborativas e essas ferramentas estimulava a autogestão. Ela não formalizava laços fracos através de adicionar amigos como Facebook e outras redes sociais, mas sim laços fortes que tinham o foco na realização de um projeto colaborativo compartilhado. A Corais ela consolidou a estratégia de inovação aberta do Instituto Faber Ludens, que foi muito bem estudada pelo Matheus Pelanda, um egresso aqui do nosso curso de design, que defendeu o TCC em 2019 sobre o infra projeto, o infra design e descreveu como que o Faber Ludens infraestruturou a Corais e depois acabou se separando dela. A Corais ela tem uma árvore de conhecimento, tem espaço projetos colaborativos, tem projetos fechados, era uma ideia no começo, depois a gente acabou não implementando, mas era para dialogar com vários tipos de entidades, laboratórios, salas de aulas, startups, comunidades e por aí vai. A ideia principal do design dessa plataforma é inspirado na maneira como funcionam os corais que tem na natureza. Esses corais são entidades vivas que depois de mortas a estrutura, ou seja, o seu esqueleto fica acumulado em cima de outro esqueleto e aí novos seres vivos podem crescer em cima dessa estrutura que vai ficando cada vez mais rica. A mesma coisa um projeto morto da Corais como o UX cards, que é esse baralho para projetar pesquisa de experiências, ele pode dar origem a outros baralhos para projetar outras coisas, no caso negócios voltados para a sustentabilidade na área de energia elétrica, que foi o caso do Copel Plus Cards. A gente teve a oportunidade durante o desenvolvimento da plataforma Corais, logo no começo, de compartilhar tudo que a gente tinha aprendido sobre design livre do Instituto Faber-Hudens e na própria desenvolvimento da Corais, usando a própria Corais. Então, para testar e mostrar o potencial da plataforma Corais, a gente resolveu desenvolver um projeto de um livro totalmente colaborativo, colaborativo durante uma semana usando o método book sprint. Então, a gente usou, escreveu o livro na plataforma Corais, usamos até uma ferramenta de videoconferência que na época estava disponível. Foi um momento bastante interessante de trabalho colaborativo remoto no design, quase dez anos atrás, uma época que poucos designers usavam essas ferramentas. Esse livro foi publicado em 2012, ele foi utilizado com uma licença Creative Commons para download gratuito e também os códigos-fontes, para quem quiser se modificar e transformar em outra coisa. Esse livro foi baixado mais de 7 mil vezes até hoje e traduzido para o espanhol, para um coletivo de arte e tecnologia em Alto Salvador, que se interessou pelo livro e resolveram traduzir. Um dos conceitos mais interessantes que tem no livro é o plano livre, que é uma maneira de pensar um design que não foca em atingir fins e acaba, entrega o projeto. Não tem fim num projeto livre, um plano livre. Ele vai dar origem a vários começos, ele vai estar sempre focado em modificar os meios. Então, tem uma continuidade, está sempre se evoluindo. Isso assim foi com a própria plataforma Corais, que já existe há mais de dez anos e está sempre se evoluindo. Ela não tem um fim específico, o fim é dado pelos projetos que cada surge na própria plataforma. Então, a gente escreve no livro que não há fim para o plano livre. O plano é continuar sempre sem objetivos definidos. Ao invés de fins, os resultados de um plano livre são vários começos, vários outros planos que surgem a partir deste mesmo. Essa estratégia de inovação aberta do Faber-Ludens acabou não dando certo, porque houve algumas divergências internas aos fundadores que levaram um lado do grupo para o capitalismo, transformaram o intervimento mais capitalista, uma ONG, no caso, enquanto que a gente resolveu se desvincular do Faber-Ludens e levar a Corais junto para um instituto chamado ambiente movimento, que resolveu manter o caráter político e voltado para interesses sociais dessa plataforma. E aí, o que aconteceu é que vários movimentos de cultura digital ligados lá, aquela herança que o Divertido Gil deixou dentro do Ministério da Cultura, mas já enfrentando uma precarização, uma falta de apoio do governo, eles começam a ver na plataforma Corais uma maneira de se sustentar e de sustentar a autogestão que eles tinham já localizada, até pelo envolvimento desses movimentos com outros movimentos que já tinham economia solidária, como o MST. Eles acabam vendo na plataforma Corais uma tecnologia digital que permitia dar mais escala, automatizar o processo de autogestão. Então, a partir de 2012, eles começam a entrar em peso na plataforma e cada um desses coletivos, eles fizeram um ponto de cultura que tinha várias atividades. Eles já usavam software livre e já usavam creative commons, novamente influenciados pela política pública lá do Gilberto Gil. Agora, uma coisa interessante que eles tinham também, tem muito a ver com a história do Gilberto Gil, da MPB, do tropicalismo, no qual ele foi um protagonista, um movimento de valorização e também de articulação da cultura popular brasileira com culturas globalizadas. Esses pontos de cultura que integravam o movimento, o programa Cultura Viva, eles tentavam fazer essa mistureba antropofágica de diferentes abordagens para a produção cultural. Como eu mencionei, eles enfrentavam um problema sério de precarização a partir de 2012, principalmente pela Alugança de Liberança, um ministério da cultura. A Marta Suplicy e depois a sua sucessora, que eu não lembro o nome agora, elas enfocaram e construíam um ministério da cultura que cobraria ou fiscalizaria o pagamento de direitos autorais. Eles abriram o tal do ECAG, que é um escritório que fazia batida em festas que estavam tocando música sem pagar direitos autorais aos artistas, os grandes no caso. Então, houve, infelizmente, aí um processo de recrudescimento da valorização da cultura popular a partir dessas gestões, ainda no momento do governo MPB. Então, esses coletivos precisavam de ferramentas colaborativas baseadas em software livre, uma plataforma nacional com enraizamento na cultura brasileira, especialmente popular, nos segmentos populares, um design de interação favorável à autogestão e uma licença de conteúdo em creative commons. E, por fim, transparência de dados, porque eles queriam que qualquer um pudesse auditar os seus coletivos de modo a... de tornar aquilo que eles estavam fazendo com recursos populares e comuns ou recursos públicos muito claro e evidente para o resto da sociedade. E aí, esses coletivos começam a criar projetos como esse, o movimento de uma plataforma criativa que vai gerenciar um espaço dentro da Universidade Federal da Bahia, no prêmio de Pernambuco, o FPE, e vai fazer um monte de movimentos, organizar festas, eventos, tudo usando a autogestão como um princípio básico, fazendo algo que o Departamento de Cultura dessa universidade não conseguia fazer. Após instalar uma ferramenta de bate-papo em 2012 na plataforma Corais, eu que era um dos desenvolvedores que saí da plataforma, eu fui interpelado por um dos usuários mais ativos da plataforma, que começou a me perguntar se era possível fazer mudanças na plataforma. E aí, essa abertura desse canal de comunicação e diálogo com os usuários acabou mudando a posição desses usuários. O Pedro Jantobá, que é esse usuário, começa a se tornar um desenvolvedor da plataforma gradualmente, usando aí vários recursos que a ele deu para participar do projeto. Ele já tinha essa experiência com coletivos autogeridos e queria organizar uma economia solidária, um circuito de economia solidária completo com ferramentas digitais. E aí, ele me corropõe, usando a ferramenta MecaDesign, ou seja, o projeto do projeto da plataforma, essa ideia de criar uma funcionalidade em moeda social dentro da Corais, que não existia ainda naquela época. Esse projeto MecaDesign é aberto para todos os usuários da plataforma e ele visa projetar a própria plataforma. O que aconteceu nesse processo de interação, de participação, foi o desenvolvimento de uma moeda social, ou melhor, um módulo de gestão de moeda social dentro da plataforma Corais, construindo a partir da customização de vários módulos existentes no Drupal, mas que oferecia funcionalidades inexistentes. Foi, talvez, o maior esforço do desenvolvimento que a gente teve na plataforma até então. Então, o que você está vendo nessa imagem é uma visualização de todos os saldos que cada membro dessa economia, desse circuito econômico, tem em relação ao coletivo. Se está no verdinho, quer dizer que a pessoa tem crédito. Se está no vermelho, é que ela está devendo, ou seja, ela não está fazendo aquilo que o coletivo espera que ela faça. No caso dessa economia, uma visão geral, você está vendo que a maioria das pessoas está no verdinho. Isso quer dizer que se trata de uma economia saudável. Essa visualização é do Teatro Vila Vela, que é um teatro que, por muitos anos, utilizou esse modo de gestão, de auto-gestão, baseado em moeda social, para compensar a corte de recursos em verbas do governo e da empresa como a base para suas ações culturais. Então, eles tinham uma escola de teatro livre que dava formação para atores e atrizes que quisessem ingressar na profissão, mas que não tivessem muitas condições financeiras, então era mais barato. Só que aí, com a perda dos financiamentos, eles começaram a ter que voltar a cobrar, ter que cobrar por esse curso. E aí, eles decidiram, através da auto-gestão, que era melhor cobrar em mensalidade uma parte da receita. Então, 30% era cobrado em moeda corrente reais e outros 70% era cobrado em moeda social, que significava que os estudantes precisavam trabalhar para aquele coletivo, para poder receber os serviços que esse coletivo oferecia. Então, o estudante tinha que necessariamente pagar a mensalidade dele com tarefas que ele fazia para o coletivo. Aqui nós temos um registro de fiscalização de uma estudante que fez um planejamento de uma "lunghouse solidária", que foi uma atividade de interesse que a comunidade definiu, que valia 40 tempos, era o nome da moeda deles. Depois que a Mariana Rosa executou essa tarefa, ela postou o resultado, um documento que prova que ela fez, e ela teve a fiscalização de uma segunda pessoa, que é o Jeff. Jeff é um outro estudante da Universidade de Livro de Teatro. Ele foi lá e verificou, olha, foi um bem feito, bom trabalho. E aí, depois dessa verificação, tem uma terceira pessoa, que é o banco, que eu estou mostrando aqui, é o gestor do banco, que faz a transação e pagamento para a conta da Mariana Rosa, para ela receber os 40 tempos que ela pode usar para pagar a mensalidade, mas também para consumir outros serviços que essa comunidade oferece, como por exemplo, a divulgação, a criação de um site, por exemplo, para divulgar o trabalho dessa atriz, e várias outras ideias que foram surgindo com a implementação desse método de produtora cultural colaborativa que o Pedro Jatoba e outros colegas desenvolveram lá, no movimento conchativo. Um dos elementos fundamentais dessa metodologia é o aspecto da moeda social ser equivalente à capacidade produtiva do coletivo num determinado período, então durante um mês, quantas coisas o nosso coletivo consegue fazer. E aí você divide e começa a calcular, né, quanto isso vale do ponto de vista financeiro dentro de uma moeda, no caso do movimento conchativo, chamada concha. Então, esse coletivo, que fazia movimento conchativo, podia ser oferecido identidade visual, cartão de visita, confeito, folder, cartais, spot de áudio, registro fotográfico, registro em vídeo, e cada um desses serviços poderia ser oferecido a quem tivesse moedas concha para pagar. Para você ter acesso a moedas conchas, você tinha que atender às demandas daquele coletivo. Isso é demonstrado em outra planilha, em que eles falam sobre as suas demandas, por exemplo, se você limpar a concha ativa, né, o espaço deles, você ganha um tanto de moeda que você pode usar depois para gravar o seu CD, por exemplo. E muitos desses serviços, notem que são serviços de design, eles não eram formados em design, mas eles estavam fazendo produtos de design, lembrando que, tudo que eu estava falando, era design auto-gestionário para você fazer parte, tem que atender a sua moeda. Essa capacidade produtiva, ou seja, os itens que estavam ali, estados naquela planilha, eles eram itens que poderiam ser produzidos por várias pessoas, ou seja, não era a especialidade de um, era aquilo que havia em comum. Então, várias pessoas dentro desse coletivo poderiam produzir identidades visuais. E aí, como é que eles descobrem isso? Fazendo um mapa de conhecimentos que estão abundantes naquela comunidade. Então, os conhecimentos estão nos cantos dessa imagem, e no meio tem as pessoas que podem contribuir para esses conhecimentos. Então, no fundo, a produtora cultural colaborativa é também uma comunidade de aprendizagem que troca conhecimentos constantemente. O Pedro Jartobá pesquisou, quer dizer, ele desenvolveu esse método, mas ele também escreveu uma pesquisa a respeito desse método, que é a dissertação de mestrado dele, defendido em 2014, e que tem um fundamento tanto de gestão quanto técnico, do ponto de vista da apropriação da corais e as customizações que a gente realizou. Além de ter o trabalho do Pedro Jartobá, que é no formato mais acadêmico, tem um livro também mais popular, escrito com uma linguagem bem acessível, chamado "Coralizando", que foi escrito pelos próprios usuários da plataforma, nos moldes, usando um processo similar ao design livre, mas com outro foco em falar sobre colaboração na economia criativa e abranger não só o design, mas também a produção colaborativa cultural, que a gente estava começando agora a pouco, derivada dessas experiências, dessa apropriação no movimento de cultura digital brasileira. Então, mais de 10 anos se passaram, a plataforma corais hoje tem mais de 700 projetos colaborativos, tem mais de 6 mil membros e continua crescendo, apesar delas estar bastante desatualizada, com o serviço da aliança estrutura, mas o legal é que sem um centavo gasto em divulgação, nós conseguimos uma capilaridade, uma distribuição pelas principais cidades do Brasil, mas também pelas cidades menores no interior, chegando aí aos confins do Lamapá, que normalmente é uma região em que você precisa gastar muito dinheiro para chegar se você quiser levar uma tecnologia de formação, no nosso caso nós não tínhamos dinheiro, e a gente conseguiu ainda assim engajar com essas pessoas que estão se conectando de maneira muitas vezes precária, mas ainda assim se conectando e aproveitando aquilo que faz sentido para elas, que vai ajudar elas a se desenvolver. A plataforma corais tem uma série de problemas, essa versão 6 do Drupal que a gente usou já está desatualizada, não dá para fazer a atualização para a 7 sem colocar muito esforço e recomeçar do zero praticamente, ela não funciona bem em dispositivos móveis, é lenta para carregar, as ferramentas como Slack, a XANA, Google Drive, o Basecamp e outras de grandes e multinacionais, estão muito mais desenvolvidas que na época em que a gente lançou a corais, então é difícil competir com elas, no fundo faltam recursos e voluntários, mas a gente vai continuar resistindo e se mantendo vivo até hoje. A Produtora Cultural Colaborativa, esse método que o projeto Bá desenvolveu, acabou sendo acolhido pela EITA, que é uma cooperativa de desenvolvimento de tecnologia da informação, e a EITA resolveu construir a sua própria plataforma digital inspirada na experiência que tinha com a corais, voltada para movimentos sociais e coletivos que precisavam de autogestão num nível mais dinâmico do que a corais oferecia. Em 2017 eles desenvolvem a Rios, que é uma customização do Next Cloud junto com o Matrix, que é uma ferramenta de rede social contra hegemônica, e esse projeto continua até hoje, um exemplo de que a corais deu origem ao Rios e vai dar origem a outras coisas através desse processo de apertura dos conhecimentos. Agora, essas duas plataformas têm problemas similares, hoje em dia nós enfrentamos uma época em que a autogestão, a esperança na autogestão está em baixo, as pessoas acham que é melhor deixar que alguém resolva seus problemas, um salvador, um herói, um político ou um líder, um empreendedor que sabe melhor do que todo mundo o que fazer. Infelizmente as redes sociais são cúmplices nisso, porque elas têm esse viés de valorizar oculto ao indivíduo, então elas sugam esses projetos colaborativos e matam eles no seu ninho, fazendo as pessoas perderem ainda mais a esperança. As pessoas que estão acomodadas por softwares proprietários, pirateados, ou plataformas extrativistas gratuitas, como o Google Drive, elas não se dão o trabalho de entrar numa plataforma corais ou Rios que funciona para outra lógica, que não tem a mesma usabilidade, elas acham que não vale a pena, que é melhor usar essas plataformas gratuitas. Ao fazer isso, elas estão cavando a sua própria corra, porque o coletivo pode morrer, porque não consegue sustentar uma plataforma que está jogando contra o coletivo. Isso significa que esses problemas de terceira ordem que a gente tratou até agora de interação, apontam para problemas de quarta ordem, que é o domínio do tal do design prospectivo, focado em novas relações. E aí a gente entra num âmbito completamente novo de design, que a gente tem pesquisado aqui na UPR, principalmente em colaboração com a professora Fernanda Botter, com o professor Kiley Marões, que são colegas desse grupo de professores que estão tentando abrir um programa de pós-propriação em design prospectivo. A gente vê que o design também pode ser uma maneira de prospectar novas relações em sistemas sociotécnicos, mudar essas estruturas mais abrangentes da sociedade. Então, um sistema sociotécnico de exemplo é a mobilidade urbana, não é só o carro que precisa para ter mobilidade urbana, tem que ter a gasolina para colocar no carro, tem que ter o dinheiro para comprar gasolina, tem que ter a indústria para produzir o carro, tem que ter as leis para gerir o tráfego e regular ele para que as pessoas não saiam matando umas as outras no trânsito, tem que ter política pública, tem que ter mapas, tem que ter um monte de coisa, tudo isso são elementos de um sistema sociotécnico. Se você quiser que a mobilidade urbana seja mais sustentável, não adianta trocar o carro apenas, você tem que trocar o posto, para o posto por exemplo, oferecer eletricidade, tem que trocar os consumidores, a mentalidade dos consumidores, ter que pensar de um jeito diferente em relação à mobilidade e por aí vai. Então, a gente pensa que o sistema sociotécnico ele é uma várias coisas relacionadas, mas o que interessa mesmo para o design é a qualidade dessas coisas em relação, que transcende a qualidade individual de cada uma dessas coisas. Então, a gente olha para as qualidades relacionais que a gente chama. Vamos comparar aqui do lado esquerdo as qualidades objetivas, que são típicas da primeira e segunda ordem de design, e até mesmo da terceira, que é a usabilidade, acessibilidade, durabilidade, utilidade, beleza e clareza, todos os atributos de um objeto. Pense agora nas qualidades que interessam para a relação entre objetos, ou vários objetos, como a sustentabilidade, resiliência, igualdade, solidariedade, comodidade e mobilidade. Essas qualidades você não consegue colocar na forma e enganar as pessoas como faz o design, lá no começo. Até dá para você fazer um greenwashing na sustentabilidade, por exemplo, mas para levar a sério mesmo essas qualidades relacionais é preciso mudar o sistema sociotécnico como um povo. E é isso que a gente está tomando coragem para fazer no design prospectivo. Essas qualidades relacionais não são ainda muito valorizadas na nossa sociedade. Por exemplo, o primeiro carro elétrico criado para produzir em massa pela GM, nos Estados Unidos, ele acabou sendo recolhido e destruído porque a mudança só do carro não era suficiente, ele não valorizava a sustentabilidade dessa relação. Hoje em dia, tem uma polarização bem maior e a gente tem, por exemplo, aqui no Paraná, uma parceria entre Renault e Copel para demonstrar a viabilidade da mobilidade elétrica no nosso estado. E aí é mostrar essa qualidade da relação entre uma indústria automotiva e uma empresa de energia elétrica, que a princípio não teria nada a ver, mas a necessidade delas se unirem para oferecer a sustentabilidade é que é o grande vantagem, o grande resultado de um projeto como o eletroposto Copel e a parceria com o Renault Zouil, que é um dos primeiros carros elétricos fabricados no Brasil. Essas qualidades relacionais, elas não são assim da noite para o dia e do nada. Tem que haver muita pressão nos sistemas sociotécnicos vindo de todos os lados, enfim, os movimentos sociais. Então a gente hoje tem uma pressão muito grande para repensar o sistema de mobilidade urbana e isso envolve, por exemplo, as greves organizadas pelos entregadores, antifascistas, pelos entregadores que estão aí lutando contra condições de trabalho mas também pelos motoristas de Uber, pelos motoristas de ônibus e por aí vai. Esses movimentos estão pressionando, a gente vai ter que repensar a nossa base energética, mas também de política pública, também de hábitos de consumo na mobilidade urbana. Então, dentro do Design Prospectivo, a gente quer olhar para esses conflitos como pontos de mutação interessantes para a gente fazer intervenções sociais. Essas tensões acumuladas, elas impulsionam a prospecção de relações capazes de expandir o que é considerado possível. No caso do design, a gente tem feito isso através de uma rede chamada Design Oppressão que deu origem ao laboratório de design contra opressões aqui na UTFPE. Essa rede envolve vários laboratórios de diferentes universidades e ela realiza vários eventos e atividades para a conscientização de designers sobre as suas implicações, por exemplo, no colonialismo digital que já mencionei, a gente teve uma peça de teatro para falar sobre isso e sobre a ameaça da inteligência artificial em substituir o trabalho de designers, tem um teatro, pode ser visto, a gravação dele no YouTube. Enfim, tem várias ações desse tipo, visando com isso estimular projetos como esse, que é o trabalho de conclusão de curso da Rafael Eleutério, que foi uma articulação da rede de mulheres vinculadas à cadeia do café, tanto mulheres que produzem café no norte do Paraná, quanto mulheres que vendem esse café aqui no Curitiba, quanto mulheres que consomem esse café e que eventualmente podem promover mudanças em leis municipais, como foi o caso da lei de proteção à mulher no local de trabalho, que foi capitaneada pela vereadora Maria Letícia. Ela acolheu uma proposta, teve uma modificação, uma proposta de lei que vinha desse coletivo de mulheres ligadas ao café, principalmente as mulheres balistas que sofriam assédio no local de trabalho. E um outro projeto muito bacana também, desenvolvido pelos nossos estudantes também, o TCC, João Conrado e João Vítor Tarrã, eles devenderam em 2022, agora recentemente, criar um sistema produto e serviço de móvel modular livre e aberto que permite múltiplas conexões, tanto aí que o projeto se chama suruba, você pode encaixar em diferentes maneiras e gerar diversos tipos de utilizações. É um projeto aberto, pode ser feito download, mas ele não tem só um móvel, ele tem uma máquina para produzir móveis, o que eles chamam de uma surumaque, uma máquina para produzir surubas. É um projeto livros que faz um questionamento sobre a heteronormatividade, sobre conservadorismo, no design de móveis, mas também que oferece uma estrutura material para o desenvolvimento de um outro modo de produção de materialidade baseado na autogestão e principalmente no ideais anarquistas. E por fim, destacar o trabalho do lado, né, em parceria com a Ciplé Inoptativa projetos de pessoas que funcionam com o sistema autogestionário também, de decisão de temas de estudos, né, os estudantes definem o que eles sabem e o que eles não sabem ainda e a gente prepara os encontros para que a gente saiba o que a gente quer saber e cada um desses temas que estão expressos no post-it é definido, escolhido e decidido pelos estudantes, não pelo professor. Muitas vezes a gente precisa chamar pessoas de fora da turma para dar aula porque o professor nem os estudantes sabem sobre aquele assunto. É muito interessante ver como a gente está tendo uma movimentação para a implementação do design autogestionário aqui dentro do design da UTFPR e o manifesto design de senso escrito por uma das turmas da Descone Projects para Pessoas sintetiza essa ideologia de um marco bastante agressivo visualmente. A gente refletindo sobre essa experiência na disciplina de projetos para pessoas, eu e a estudante de Iniciação Científica, Rafael Angelon, que hoje está fazendo mestrada no ProPGTE, a gente descobriu que esse design autogestionário ele é feito com um corpo projetual coletivo e monstruoso. Quem faz design autogestionário não é um designer individualmente ou um gênio creativo, mas sempre é um coletivo. Esse coletivo tem um corpo material também que é equivalente, mas e que é alterpotente ao corpo do Leviatã, que é uma das teorias que fundamenta o estado moderno capitalista. Esse Leviatã é o rei que se coloca como um opressor maior que vai oprimir todos os pequenos opressores de modo que eles não se oprimam tanto. Então ele se coloca nessa posição de grande mediador opressor da sociedade. É por isso que a gente sempre sente em algum momento que o estado moderno está nos oprimindo de uma maneira ou outra, porque ele é um grande corpo coletivo que é um Leviatã, que é esse monstro. E aí a gente tenta criar um monstro coletivo que não seja opressor. Isso é um ideal, digamos assim, a longo prazo, a gente superar a distinção entre privado e público e criar uma terceira entidade que nem é privada e pública, como esse terceiro monstro, digamos assim, que não é o Leviatã, que também não é as empresas monstruosas multinacionais, mas que seria um monstro coletivo anti-opressivo ou libertador. Enfim, isso são ideias bastante abrogentes que estão em construção, especialmente essa quarta ordem, o design prospectivo, a prospecção, imagina, de uma outra sociedade que o estado e o setor produtivo privado não são as únicas possibilidades de organização coletiva, mas sim também essa terceira força, que é a terceira força focada no comum, na propriedade comum, a propriedade compartilhada que se implementa em incensas como o Creative Commons. A palavra "common" do Creative Commons é essa ideologia de que o comum não é nem privado nem público, ele é de todo mundo, porque afinal de contas o público não é de todo mundo, o público é do estado, e o estado usa sua força opressiva para muitas vezes eliminar várias pessoas, é de todo mundo, mas só daquelas que são consideradas cidadãs, ou só daquelas que votam, ou só daquelas que têm dinheiro na sociedade. Então por isso o estado precisa ser superado e isso envolve um pensamento que vai além do socialismo, que vai além do anarquismo e pode estar construindo uma outra utopia de sociedade. Então sejam bem vindos ao Design Autogestionário, não é só uma mudança de Tecnologia e Gestão, é uma mudança também de modo de produção social. Convido vocês a participar e fico à disposição para conversar e trocar ideias sobre esse assunto.